RELATÓRIO N° 58/03

PETIÇÃO 12.233

VICTOR AMESTICA MORENO E OUTROS

ADMISSIBILIDADE

CHILE[1]

10 de outubro de 2003

 

 

I.       RESUMO

 

1.       Em 1 de novembro de 1999, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão Interamericana”, “a Comissão” ou “CIDH”) recebeu uma petição apresentada pela  Corporação de Promoção de Defesa dos  Direitos do Povo -CODEPU- (doravante denominada “os peticionários”), contra a República do Chile (doravante denominada “o Estado” ou “o Estado chileno”)  na qual se alega que os senhores Víctor Améstica Moreno, Alberto Araneda Muñoz, Héctor Martínez Vázquez, Oscar Sepúlveda Alarcón e Alejandro César Sánchez Canales todos eles membros de Carabineros do Chile[2] (doravante denominados “os Carabineros”), foram vítimas de um processo de qualificação realizado pelas autoridades de Carabineros de Chile violatório de seus direitos básicos e depois despedidos da  instituição, sem que tenha sido prolatada uma decisão judicial substantiva sobre a vulneração de seus direitos. Alegam, também que suas respectivas cônjuges Jenny Burgos Orrego, Marisol Valencia Poblete, Johanna Valdebenito Pinto, Carmen Araya Cordero e María Angélica Olguín (doravante denominadas “as esposas dos  Carabineros”), foram discriminadas por serem suas esposas.

 

2.       Os peticionários alegaram que o Estado era responsável pela  violação do direito à proteção da  honra e da dignidade, reunião, propriedade privada, igualdade perante a lei e proteção judicial consagrados nos  artigos 11(2), 15, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana. Com relação à admissibilidade da petição, os peticionários alegaram que foram esgotados os recursos existentes no  plano interno para buscar a proteção das garantias violadas. O Estado, por sua parte, argumenta que os peticionários não provaram nenhuma de suas alegações em sede interna e que não violaram nenhum dos  direitos alegados. O Estado solicita a CIDH que desacolha a petição e a declare inadmissível.

 

3.       Após analisar as posições das partes, a Comissão conclui que é competente para conhecer a petição apresentada pelos  peticionários e que esta é admissível, à luz dos  artigos 46 e 47 da  Convenção Americana.

 

II.        TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.       Em 1 de novembro de 1999, a Comissão recebeu uma petição apresentada pela  Corporação de Promoção de Defesa dos  Direitos do Povo  -CODEPU- na  qual se denunciava o Estado de Chile pela  violações dos direitos de Víctor Améstica Moreno,  Jenny Burgos Orrego, Alberto Araneda Muñoz, Marisol Valencia Poblete, Héctor Martínez Vázquez, Johanna Valdebenito Pinto, Oscar Sepúlveda Alarcón, Carmen Araya Cordero,  Alejandro César Sánchez Canales e María Angélica Olguín, consignados nos  artigos 11(2), 15, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana.

 

5.       Em 1 de dezembro de 1999, a Comissão enviou as partes pertinentes da  denúncia ao Estado chileno e fixou o prazo de 90 dias para que apresentasse informação relativa aos fatos e ao esgotamento dos  recursos internos.

 

6.       Em 9 de fevereiro de 2000, o Estado de Chile solicitou à Comissão uma prorrogação para apresentar sua resposta. A este respeito, em 22 de fevereiro de 2000, a Comissão concedeu uma prorrogação de 90 dias. Em 7 de junho de 2000, a Missão  Permanente do Chile perante a Organização de Estados Americanos, solicitou uma nova prorrogação por 90 dias, assinalando que as autoridades competentes ainda não haviam entregue a informação necessária para contestar a petição. Nesse mesmo dia, a Comissão assinalou ao Estado que que havia expirado o prazo máximo previsto no  artigo 34.6 do Regulamento da  Comissão vigente naquele momento.

 

7.       A informação do Estado foi recebida em 27 de junho de 2000 e foi remetida aos peticionários em 18 de julho do mesmo ano, fixando a Comissão o prazo de 30 dias para que apresentassem suas observações.  Em 28 de agosto de 2000, os peticionários solicitaram uma prorrogação para apresentar suas observações à resposta do Estado.

 

8.       As observações dos  peticionários foram recebidas em 20 de setembro de 2000, juntamente com uma proposta apresentada pelos  peticionários ao Estado para conseguir uma solução amistosa e uma carta do Estado respondendo que estudariam a proposta.  Esta informação foi enviada ao Governo em 2 de outubro de 2000, fixando a Comissão um prazo de 30 dias para apresentar observações. Em 29 de janeiro de 2001, o Estado apresentou suas observações.

 

III.      POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.      Posição do peticionário

 

9.       Os peticionários alegam que devido a uma distribuição de um beneficio de carácter econômico adicional, que qualificam de desigual, em 27 de abril de 1998, data em que se celebra o dia do carabinero, as esposas de vários Carabineros afetados por essa distribuição desigual realizaram uma manifestação de protesto no centro da  cidade de Santiago. Os peticionários assinalaram que a instituição de Carabineros havia obrigado a todos os Carabineros a firmar um documento em que prometiam que seus cônjuges e familiares não participariam de nenhuma manifestação. Alegam que foram obrigados a assinar este documento.

 

10.   Os peticionários indicam que Carabineros de Chile iniciou uma perseguição através de uma espionagem ilícita de numerosos lares de funcionários de Carabineros, incluindo os das supostas vítimas. Assinalam que os carabineros chegaram a grampear suas linhas telefônicas e a fotografar muitas das cônjuges em suas atividades privadas e sociais. Afirmam que depois do protesto, muitos funcionários de Carabineros foram qualificados em Lista 4 de eliminação,[3] e posteriormente despedidos.

 

11.   Em relação às supostas vítimas desta petição, que eram funcionários de Carabineros, a petição assinala que:

 

Víctor Améstica Moreno, foi notificado em 7 de julho de 1998 da  eliminação da  instituição de Carabineros. Alega que foi informado que a exoneração) foi motivada  por “não ter cumprido o dever de comunicar ao comando institucional o que estava sucedendo quanto às mobilizações”.[4] Assinala que ele foi despedido sem receber nenhuma notificação formal. Indica que foi privado de utilizar as instâncias de revisão a que tinha direito. Também argumenta que informalmente foi informado que sua exoneração deveu-se à participação de sua esposa na  manifestação de 27 de abril. Afirma que os dois anos anteriores à qualificação na Lista 4 de eliminação, foi qualificado na  Lista 1 de méritos.

 

Alberto Araneda Muñoz foi notificado em 8 de julho de 1998 que estava na  Lista 4 de eliminação. Assinala que em maio de 1998, havia sido qualificado na  Lista 1 de méritos. Indica que a Junta Qualificadora o citou posteriormente para perguntar-lhe sobre a participação de sua esposa nos protestos de 27 de abril, indicando que sua esposa havia dado a luz em 8 de abril, razão pela qual não havia saído de seu lar no dia 27 desse mês. Afirma que extraoficialmente foi informado que sua exoneração ocorreu devido à participação de sua esposa nos protestos de 27 de abril. Finalmente indica que nos  dois anos anteriores à  sua exoneração foi qualificado nas listas 1 e 2.

 

Héctor Martínez Vázquez foi notificado em 2 de junho de 1998 que havia sido qualificado na  Lista 1 de méritos. Posteriormente, em 2 de julho de 1998 foi citado e notificado que havia sido despedido. Depois de apelar dessa decisão, em 8 de julho de 1998, foi notificado de sua eliminação da  instituição. Alega o peticionário que o senhor Martines Vázquez foi comunicado que a razão para sua exoneração havia sido a participação de sua esposa nos protestos de 27 de abril. Afirma que nesse momento, indicou a seus superiores que, devido a um acidente automobilístico, sua esposa estava de cama na data dos protestos e que,  portanto, não podia ter participado dela. Informa ademais que em 10 anos na  instituição, sempre manteve-se na Lista 1 de méritos, com exceção de 1994 que foi qualificado na  Lista 2 Satisfatório.

 

Oscar Sepúlveda Alarcón foi chamado pelo  Comandante em junho de 1998 e interrogado acerca de sua família. No dia seguinte foi informado que o haviam qualificado na  Lista 2  Satisfatório. Assinala que depois de 5 dias lhe indicaram que a sua qualificação anterior havia sido anulada e o haviam incluido na  Lista 4 de eliminação. Em 8 de julho de 1998, lhe indicaram que devia entregar sua placa policial e demais elementos de serviço. Assinala que durante os 14 anos de serviço na  instituição sempre se manteve nas listas de qualificação 1 e 2, com exceção do ano 1997 que foi qualificado na Lista 3. Também argumenta que durante 1998 não havia detenção como sanção interna.

 

Alejandro César Sánchez Canales foi notificado em 7 de julho de 1998 de sua exoneração da  instituição, mas não lhe entregaram cópia da  resolução. Informa que durante uma investigação  realizada pelo Tenente, não foi autorizado a levar seu filho ao hospital.. Manifesta que depois disso foi citado a declarar e que lhe perguntaram se havia comentado com sua cônjuge os problemas relacionados com os salários e ele respondeu negativamente. Indica também que lhe perguntaram se havia tido contato com a imprensa por esse problema, respondendo que não. Posteriormente foi notificado de sua exoneração.

 

12.   Segundo os peticionários, a qualificação que deu origem à exoneração dos  Carabineros é consequência direta da  manifestação realizada em 27 de abril por um grupo de esposas de Carabineros.

 

13.   Ao referir-se à admissibilidade, os peticionários argumentaram que esgotaram os recursos disponíveis dentro da  Instituição de Carabineros. Indicam que em 18 de julho de 1998 interpuseram vários recursos de proteção perante a Corte de Apelações de Santiago, contra as  exonerações, os quais foram acumulados. Indicam que em 28 de janeiro de 1999 a Corte de Apelações indeferiu o recurso argumentando que não lhe correspondia entrar a examinar os fundamentos que tiveram em conta as Juntas Qualificadoras para determinar a qualificação que teve como consequência a exoneração dos  Carabineros, visto que as Juntas eram soberanas e que se fossem examinar os fundamentos considerados para a qualificação se constituiria em outra instância.

 

14.   Os peticionários indicam que esta resolução foi confirmada pela  Corte Suprema de Chile em 28 de abril de 1999, a qual considerou o processo de qualificação que “não se evidencia nem foi demonstrado nos autos que fora fruto da  arbitrariedade ou abuso, ou contrário ao ordenamento constitucional ou legal, o que desde já obsta o acolhimento dos recursos intentados, sem que seja importante entrar na análise das garantias alegadamente violadas”. [5]

 

15.   Os peticionários assinalam que ocorreu uma ingerência arbitrária na vida privada das supostas vítimas por parte dos  comandos de Carabineros do Chile, por meio da  vigilância e seguimento permanentes de parte de pessoal de serviço ativo da  Instituição. Consideram que isto constitui uma violação à honra e a dignidade protegidos pelo  artigo 11(2) da  Convenção.

 

16.   Adicionalmente argumentam que o Estado violou o direito à propriedade privada dos  Carabineros mencionados na sua petição, por tê-los privado de seu direito sobre um bem incorporal, como eram seus cargos de funcionários de Carabineros. Afirmam que isto ocorreu por meio de um procedimento carente de racionalidade, tendo em conta fatores alheios à suas qualidades profissionais e funcionárias.

 

17.   Com relação às esposas dos  Carabineros supostas vítimas nesta petição, assinalam que foi violado o seu direito de reunião, protegido pelo  artigo 15 da  Convenção Americana, ao impedir-lhes que se reúnam ou se manifestem a respeito de um assunto administrativo da  instituição de Carabineros. Consideram que “constitui uma negação ao direito de sancionar os funcionários pelo  legítimo exercício do mesmo por parte de seus cônjuges”.[6] Consideram os peticionários que foi violado o direito a ter igual proteção da  lei sem  discriminação porque as esposas dos  Carabineros haviam sido “discriminadas indiretamente, sendo cidadãs civis, privando-as de seu direito de expressar-se livremente, de organizar-se e de ter vida privada”.[7]

 

18.   Finalmente os peticionários assinalam que houve uma violação ao artigo 25 da  Convenção Americana, e que o único recurso efetivo, a Corte de Apelações de Santiago,  absteve-se em pronunciar-se sobre o mérito, limitando-se a assinalar que o assunto era de competência da  autoridade administrativa.

 

19.   Na  resposta dos  peticionários as observações do Estado, manifestaram que as observações do governo demostraram que as Juntas são soberanas e que, portanto, poderiam legalmente qualificar a conduta dos  funcionários de Carabineros considerando as condutas de seus cônjuges. Os peticionários alegam que isto demonstra que o Estado de Chile aceita a qualificação destes funcionários além de suas aptidões profissionais e mais além de sua pessoa. Consideram que as expressões realizadas pelo  Estado no  sentido de que a instituição de Carabineros tem características especiais que impõe a seus membros obrigações além de um cidadão comum, demonstra o tratamento desigual destes funcionários a respeito do resto dos  cidadãos.  Agregam os peticionários que “em nosso Estado não somos todos iguais e que Carabineros de Chile está excluido do estatuto nacional e internacional dos  direitos fundamentais”.[8]

 

20.   Em relação às afirmações do Estado de que os peticionários não puderam provar em sede interna que suas exoneraçoes  tenham sido provocados pela  conduta de suas esposas, bem como que tenham sido objeto de seguimentos ou intrusões em sua vida privada, os peticionários alegam que é difícil para o cidadão comum provar contra o Estado em qualquer  tipo de matéria.

 

21.   Sendo assim, os peticionários alegam que foram  violados os artigos 11(2), 15, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana.

 

b.       Posição do Estado

 

22.   O Estado manifesta em primeiro lugar que os Carabineros do Chile é uma  instituição policial, técnica e de carácter militar que integra a força pública. Informa que devido à sua natureza de corpo armado, “Carabineros é essencialmente obediente e não deliberante, ademais de profissional, hierarquizado e disciplinado”.[9] Assinala que, em consequência, o especial ordenamento jurídico obriga a situar as atuações institucionais e de seu pessoal em uma realidade conceitual e prática diferente daquela do  mundo civil, devendo manter uma férrea disciplina e o respeito à ordem hierárquica.

 

23.   Com relação aos  fatos que deram origem a este caso, o Estado assinala que no  ano 1998, frente ao descontentamento pela  distribuição de benefícios econômicos, algumas das esposas de quadro de pessoal dos Carabineros realizaram vários  protestos públicos. Afirma que alguns Carabineros, protegidos pelo  anonimato, foram entrevistados por canais de televisão efetuando declarações  contra seus comandos. Considera o Estado que estas atividades, consideradas em conjunto, constituem uma “manifetação de ato de indisciplina, contrário à legalidade vigente e enfraquecedora das bases de qualquer instituição armada...”[10]

 

24.   O Estado explica que o processo de qualificação é realizado por uma junta de três pessoas e que suas decisões são revisadas por outra junta também composta de três pessoas. Considera que, no presente caso, os Carabineros exerceram seu direito de apelar das resoluções pelas quais foram qualificados na  Lista 4 de eliminação, interpondo inclusive recursos judiciais que chegaram até a Corte Suprema. Alega o Estado, em consequência, que não foi configurada nenhuma violação da Convenção Americana.

 

25.   Com respeito aos direitos que foram alegadamente violados, o Estado assinalou, referindo-se ao direito à honra e dignidade, que a Corte Suprema havia determinado que não se podia provar as alegações das supostas vítimas, em particular, o relativo à suposta vigilância ou seguimentos permanentes. O Estado considera que “aquele que alega algo deve prová-lo”. O Estado informa que não interveio na vida familiar das supostas vítimas, nem em suas relações íntimas. O Estado assinala que, porém,  pelo  estatuto especial que rege os Carabineros, suas famílias devem restringir-se a certas normas compatíveis com a classe de atividade que desenvolvem os funcionários e que não são assimiláveis as de um civil comum.

 

26.   Em relação ao direito de reunião, o Estado assinala que as esposas dos  Carabineros efetivamente reuniram-se e exerceram esse direito e que, ademais, obtiveram  autorização legal da Prefeitura de Santiago.

 

27.   No que se refere ao direito de propriedade, o Estado argumenta que o direito de propriedade sobre o emprego não é absoluto no Chile e que o processo de qualificação ao que se submetem os funcionários públicos é prova disto. Indica que o artigo 21 da  Convenção subordina o uso e gozo dos bens ao interesse social, o que nesta situação, considera o Estado, é evidente já que do contrário se obrigaria ao Estado a manter funcionários ineficientes ou com desvios de conduta, tornando, no caso da polícia, um perigo para a sociedade.

 

28.   O Estado defende que não foi afetado o direito à igualdade das esposas dos  Carabineros, visto que puderam exercer seus direitos a reunirem-se, expressarem-se, organizarem-se e ter vida privada e que os peticionários contradizem-se ao formular estes argumentos. O Estado complementa:

 

Outra coisa é argumentar que a raiz de tais expressões seus maridos foram punidos com sua  exoneração dos Carabineros. A este respeito deve-se recordar ... especial estatuto que  rege o pessoal de Carabineros em atenção a seu caráter de polícia profissional, militarizada, obediente, disciplinada e não deliberante e a insofismável repercussão das funções dos  Carabineros com a conduta de seus familiares. Não existe uma evidência palpável que permita transformar em realidade as afirmações dos  peticionários e tampouco essa situação é assimilável frente a  existência de uma desigualdade perante a lei e a uma falta de proteção legal. O tratamento que Carabineros do Chile dá a seu pessoal e às suas famílias, se enquadra dentro de esquemas privativos e concomitantes com o trabalho que a instituição desenvolve, a que por definição é exclusiva e única.[11]

 

29.   Explicou que isto não significa que as famílias dos  Carabineros tenham um tratamento distinto frente à lei, o que significa é que “imprime uma maior responsabilidade em seus atos e cria uma vinculação indissolúvel entre filhos, esposa e a função de pai polícia.” O Estado negou que tenha intervindo na  vida familiar dos  peticionários, ao contrário, afirmou que foram  algumas das cônjuges dos  funcionários dos Carabineros que intervieram através dos  meios de comunicação e em manifestações públicas nas relações entre Carabineros do Chile como instituição e seu pessoal.

 

30.   O Estado afirma que as supostas vítimas não puderam provar perante os tribunais nacionais que obrigou aos funcionários a impedir que as esposas interviessem nas manifestações públicas. O Estado ressalta que as supostas vítimas não conseguiram provar tampouco que a eliminação das filas de Carabineros tenha obedecido à manifestações públicas de seus cônjuges.

 

31.   No que se refere à proteção judicial, o Estado assinala que as supostas vítimas tiveram acesso à todas as instâncias de revisão que a lei lhes outorga, que lhes foi permitido expressar seus argumentos, os quais foram avaliados e resolvidos em cada oportunidade conforme o direito.

 

32.   Em suas observações à resposta dos  peticionários, o Estado reitera em linhas  gerais suas posições quanto à não violação de nenhum direito da  Convenção, bem como do estatuto especial que rege o comportamento daqueles que pertencem à uma instituição como Carabineros do Chile, sem que isto  implique desconhecer seus direitos fundamentais. Quanto à impossibilidade das supostas vítimas de produzir provas contra o Estado, assinala que este argumento não é verdadeiro, por tratar-se de “policiais profissionais, capacitados para estabelecer o corpo de delito, para acompanhar no tribunal os meios perpetrados, assim como todos os elementos necessários para acreditá-lo e individualizar seus autores”.[12]

 

33.   Por último, o Estado manifestou não ter violado nenhuma das normas da  Convenção Americana e que aquelas invocadas pelos  peticionários como violadas, foram  plenamente cumpridas. Portanto, solicita à Comissão que desconsidere os argumentos dos peticionários.

 

IV.      ANÁLISE SOBRE COMPETÊNCIA E ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência ratione pessoae, ratione loci, ratione temporis e ratione materiae da  Comissão.

 

34.     Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, para os quais o Chile comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Chile é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 21 de agosto de 1990, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

35.     A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado.

 

36.     A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição.

 

37.     Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações aos direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana

 

 

B.       Requisitos de Admissibilidade

 

1.       Esgotamento dos  recursos internos

 

38.     O artigo 46(1) da Convenção Americana estabelece que para que um caso possa ser admitido é preciso que “se tenha interposto e esgotado os recursos de jurisdição interna” do Estado.

 

39.     O Estado não interpôs objeções preliminares relacionadas com a falta de esgotamento dos recursos internos. Consequentemente, a Comissão Interamericana considera que o Estado chileno não invocou nesta petição a falta de esgotamento dos recursos internos nas primeiras etapas do procedimento.

 

40.     A Corte Interamericana entendeu em reiteradas oportunidades que “a exceção de não-esgotamento dos recursos internos, para ser oportuna, deve ser formulada nas primeiras etapas do procedimento, na falta da qual se presume a renúncia tácita por parte do Estado interessado”.

 

41.     Portanto, a Comissão considera que o Estado chileno renunciou à exceção de falta de esgotamento dos recursos internos, posto que não a apresentou na primeira oportunidade processual que teve, ou seja, em sua resposta à petição que deu início ao trâmite.

 

2.       Prazo de apresentação da  petição

 

42.     Na  petição sob estudo, a CIDH estabeleceu a renúncia tácita do Estado chileno a seu direito de interpor a exceção de falta de esgotamento dos recursos internos, motivo pelo qual não é aplicável o requisito do artigo 46(1)(b) da  Convenção Americana.  Entretanto, os requisitos convencionais de esgotamento de recursos internos e de apresentação dentro do prazo de seis meses da  sentença que esgota a jurisdição interna são independentes.  Portanto, a Comissão Interamericana deve determinar se a petição sob estudo foi apresentada dentro de um prazo razoável.  Neste sentido, a CIDH observa que a petição original foi recebida em 4 de agosto de 1999. A última decisão de um tribunal interno foi prolatada em 28 de abril de 1999.  Consequentemente, a CIDH considera que foi apresentada dentro de um prazo razoável.

 

3.       Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

43.     Não surge do expediente que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional.  Portanto, considera-se cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 46(1)(c) e 47(d) da  Convenção

 

 

4.       Caracterização dos  fatos alegados

 

44.     O Estado solicitou à Comissão que não acolhesse a denúncia, porque cumpriu com as obrigações impostas pela  Convenção a respeito dos artigos que os peticionários alegam violados.

 

45.     A Comissão considera que não corresponde a esta etapa do procedimento estabelecer se houve ou não uma violação da  Convenção Americana.  Para os fins da  admissibilidade, a CIDH deve decidir se a petição expõe fatos que caracterizam uma violação, como estipula o artigo 47(b) da  Convenção Americana, e se a petição é “manifestamente infundada” ou seja “evidente sua total improcedência”, segundo o inciso (c) do mesmo artigo

 

46.     O padrão  de apreciação destes extremos é diferente do requerido para decidir sobre os méritos de uma denúncia. A CIDH deve realizar uma avaliação prima facie para examinar se a denúncia fundamenta a aparente ou potencial violação de um direito garantido pela  Convenção e não para estabelecer a existência de uma violação. Este exame é uma análise sumária que não implica num prejulgamento ou um avanço de opinião sobre o mérito. O próprio Regulamento da  Comissão, ao estabelecer duas claras etapas de admissibilidade e mérito, reflete esta distinção entre a avaliação que deve realizar a Comissão para fins de declarar uma petição admissível e aquela requerida para estabelecer uma violação.

 

47.   No que se refere à presente petição, a Comissão considera que os argumentos apresentados pelo  Estado requerem uma análise de mérito do assunto, para que possa ser resolvido. A CIDH não entende que a petição seja “manifestamente infundada” o que seja “evidente sua improcedência”. Igualmente, a CIDH considera que, prima facie, os peticionários preencheram os requisitos requeridos no  artigo 47(b) e (c).

 

48. Embora não tenham sido invocados pelos  peticionários, e em aplicação do princípio iuria novit curia, a Comissão Interamericana considera ademais que os fatos descritos poderiam constituir violações dos  direitos as garantias judiciais, a liberdade de expressão e a proteção da  família. A Comissão também considera que poderia constituir-se violações as obrigações que tem o  Estado em virtude dos  artigos 1.1 e 2 da  Convenção Americana. 

 

49. A Comissão considera que no  presente caso é competente para avaliar as supostas violações aos direitos à proteção da  honra e a dignidade, garantias judiciais, reunião, proteção à família, propriedade, igualdade perante a lei e proteção judicial, em conjunção com as obrigações de respeitar e garantir os direitos e o dever de adequar a legislação interna aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, as quais poderiam caracterizar violações aos direitos das supostas vítimas, consagrados nos  artigos 1(1), 2, 8, 11, 13, 15, 17, 21, 24 e 25 da  Convenção Americana.

 

 

V.      CONCLUSÕES

 

50. A Comissão conclui que tem competência para examinar o caso apresentado pelos peticionários sobre supostas violações aos direitos proteção da  honra e a dignidade, garantias judiciais, reunião, proteção à família, propriedade, igualdade perante a lei e proteção judicial, em conjunção com as obrigações de respeitar e garantir os direitos e o dever de adequar a legislação interna aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado

 

51. Em virtude dos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito do assunto,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.        Declarar admissível a petição sob estudo em relação aos artigos 1(1), 2, 8, 11, 13, 15, 17, 21, 24 e 25  da  Convenção Americana.

 

2.         Notificar as partes desta decisão.

 

3.        Iniciar a análise do mérito do assunto.

 

2.        Publicar o presente relatório e inclui-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 10 de outubro de 2003.


 


[1] O Comissionado José Zalaquett, Primeiro Vice-Presidente, nacional do Chile, não participou no exame e votação deste caso, de conformidade com o artigo 17(2)(a) do Regulamento da  CIDH  .

[2]  Carabineros de Chile é uma instituição policial, técnica e de carácter militar, criada em 1927, que integra as Forças  de Ordem e Segurança Pública do Chile.

[3] Em maio de cada ano os Carabineros do Chile realizam o Processo de Qualificação Anual com o  propósito de  qualificar os antecedentes pessoais e profissionais de todos os Carabineros, correspondentes aos últimos 12 meses. Esta qualificação é realizada pela  Junta Qualificadora de Cabos e Carabineros e Junta de Apelações de Cabos e Carabineros, de acordo com o disposto pelo  Regulamento No. 8 de Eleição e Ascensão de Pessoal de Carabineros. Existem 4 possíveis  qualificações: Lista 1 de mérito, Lista 2 de satisfatório, Lista 3 de observação e Lista 4 de eliminação.

[4] Ver nota dos  peticionários de 1 de novembro de 1999, pág. 5.

[5] Ver, nota dos  peticionários de 1 de novembro de 1999, pág. 12.

[6] Ver, nota dos  peticionários de 1 de novembro de 1999, pág. 13.

[7] Ibid.

[8] Ver, nota dos  peticionários de 2 de outubro de 2000, pág. 5.

[9] Ver, nota de observações do Estado de 2 de junho de 2000, pág. 2.

[10] Ver, nota de observações do Estado de 2 de junho de 2000, pág. 3.

[11] Ver, nota de observações do Estado de 2 de junho de 2000, págs. 8 e 9.

[12] Ver, nota de observações do Estado de 26 de janeiro de 2001, pág. 3.