RELATÓRIO NO 74/03

ADMISSIBILIDADE

PETIÇÃO 790/01

GRAN CACIQUE MICHAEL MITCHELL

CANADÁ

22 de outubro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.       Em 26 de novembro de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão Interamericana” ou “a Comissão”) recebeu uma denúncia apresentada pelo  Sr. Peter W. Hutchins, do escritório jurídico Hutchins, Soroka & Grant, de Montreal, Canadá, (doravante denominada “os peticionários”) em nome do Grande Cacique Michael Mitchell, Mohawk de Akwesasne, residente do Canadá, na que alegam que o Estado do Canadá (doravante denominado “Canadá” ou “o Estado”) violou o artigo XIII da  Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem (doravante denominada “a Declaração Americana”).  Na  petição se afirma que em 22 de março de 1988, o Grande Cacique Mitchell, acompanhado de outros membros de sua comunidade, entrou no Canadá procedente de Nova York pela Ponte Internacional Cornwall, com uma série de mercadorias  destinadas aos territórios Mohawk de Tyendinaga e Akwesasne.  Os funcionários da alfândega canadense cobraram do Grande Cacique Mitchell impostos alfandegários no total de  US $361.64, que este negou-se a pagar, invocando direitos aborígenes e contratuais consagrados na  Constituição do Canadá. O território mohawk de Akwesasne está situado nas províncias canadenses de Quebec e Ontario e no  Estado de Nova York, nos Estados Unidos.  Na  petição se alega que o Canadá incorreu em responsabilidade internacional por não reconhecer o direito aborígene de levar mercadorias livres de impostos dos Estados Unidos e através da  fronteira que divide o território desta comunidade indígena.

 

2.       Os peticionários alegam que os fatos denunciados constituem uma violação de “direito à cultura” disposto no  artigo XIII da  Declaração Americana. Os peticionários alegam que o direito à cultura inclui um suposto direito aborígene  ao comércio com outros povos autóctones (“First Nations”) (que existem em ambos lados da  fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá) sem ter que pagar direitos de alfândega em nenhum destes países. Os peticionários argumentam que este direito aborígene  está baseado em práticas e costumes históricos dos  povos indígenas do Canadá, que existiam antes da  chegada dos  colonos europeus. Os peticionários alegam que o Sr. Mitchell e os demais membros de sua comunidade foram privados de seu direito de transportar mercadorias, livres de impostos, através da  fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá que divide o território de Akwesasne, e que essa proibição impede o comércio entre os povos autóctones do Canadá. Afirma-se que o comércio é um elemento distintivo essencial da  cultura mohawk e da  Confederação Iroquois, e foi historicamente um elemento central da  cultura tradicional do povo Mohawk.  O Estado respondeu que a petição deve ser declarada inadmissível de fato e de direito. Defende que o direito a formar parte da  vida cultural da  comunidade não compreende o comércio como aspecto da  cultura e que o artigo XIII sem dúvida não protege o comércio livre de impostos.

 

3.       Sem prejulgar o mérito, a Comissão conclui no  presente relatório que o caso é admissível pois satisfaz os requisitos de procedimento dispostos em seu Regulamento. Estes dispositivos constam do  Capítulo II do Regulamento da  Comissão (artigos 30 a 37) e são aplicáveis aos Estados membros da  OEA que não são partes da  Convenção Americana em virtude dos  artigos 49 e 50 do mesmo Regulamento. Por conseguinte, a Comissão decide declarar admissível a petição e iniciar o trâmite do caso, notificar as partes desta decisão e publicá-la em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da  OEA.

 

          II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.       Em 23 de novembro de 2001,  Peter W. Hutchins, do escritório jurídico Hutchins, Soroka & Dionne (desde abril de 2003, Hutchins, Soroka & Grandet) apresentou uma denúncia em nome do Grande Cacique Michael Mitchell perante a Comissão Interamericana, cujas partes pertinentes foram remetidas ao Estado em 25 de fevereiro de 2002.  A Comissão solicitou ao Estado que enviasse uma resposta dentro de um período de dois meses, segundo o artigo 30(3) de seu Regulamento. Em 15 de abril de 2002, o Estado pediu uma prorrogação de 60 dias para realizar as consultas pertinentes. Em 16 de abril de 2002, a Comissão concedeu o solicitado. Em 12 de julho de 2002, a Comissão recebeu a resposta do Estado à petição. A mesma foi remetida aos peticionários em 27 de agosto de 2002, solicitando-lhes que toda observação à resposta do Estado fosse apresentada dentro de  30 dias. Em 4 de setembro de 2002, a Comissão recebeu um pedido de prorrogação de trinta dias dos peticionários para apresentar suas observações. Em 6 de setembro de 2002, a CIDH concedeu o pedido.  Em 15 de outubro de 2002, foi pedida uma segunda prorrogação, até 29 de novembro de 2002. Em 23 de novembro de 2002, a Comissão concedeu a segunda prorrogação. Em 29 de novembro de 2002, os peticionários apresentaram suas observações à resposta do Canadá à petição. Em 30 de abril de 2003, a Comissão remeteu ao Estado as partes pertinentes das observações dos  peticionários. Não foram recebidas novas comunicações.

 

II.       POSIÇÃO DAS PARTES SOBRE A ADMISSIBILIDADE

 

A.      Os peticionários

 

          5.       O Grande Cacique Michael Mitchell é um mohawk de Akwesasne, residente do Canadá, e é descendente do Estado conhecido como  Nação Mohawk, que é parte da  Confederação Iroquois. A Confederação Iroquois inclui os povos Mohawk, Oneida, Onondaga, Cayuga, Seneca e Tuscarora.  Tanto a Nação Mohawk como a Confederação Iroquois são anteriores à chegada dos  europeus.

 

          6.       O território da  comunidade Akwesasne está em parte situado na  Província de Quebec, em parte, na  Província de Ontario, Canadá, e parcialmente no Estado de Nova York, Estados Unidos.  Está dividido pela  fronteira internacional que divide o Canadá e os Estados Unidos. A divisão causada pela  existência de uma fronteira internacional afeta os residentes de Akwesasne cotidianamente e constitui uma profunda interferência em suas possibilidades de viver sua vida.

 

          7.       Os Mohawks de Akwesasne mantêm uma antiga disputa com o Governo do Canadá por seus direitos através da  fronteira entre Canadá e os Estados Unidos que divide seu território. O Grande Cacique Michael Mitchell e os membros de sua comunidade alegam que foram privados do direito de transportar mercadorias através da  fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá com fins de comércio com outros povos autóctones que estão no Canadá. Em 22 de março de 1988, o Grande Cacique Mitchell ingressou com uma série de mercadorias no Canadá, procedente do Estado de Nova York, para por a prova os impostos fronteiriços dos  aborígenes. Entrou no Canadá pela Ponte Internacional Cornwall com os seguintes elementos: uma máquina da valor agregado, dez rolos de pano,  vinte bíblias, roupa usada, uma caixa de lubrificante para carros, dez rolos de pão, quatro quilos de manteiga, quatro galões de leite, seis bolsas de biscoitos, doces e  latas de sopa. Todos estes artigos estavam destinados ao território mohawk de Tyendinaga, no Canadá, exceto o lubrificante, que estava destinado à uma loja do território mohawk de Akwesasne, do lado canadense da  fronteira. Os funcionários alfandegários canadenses cobraram do Grande Cacique Mitchell impostos alfandegários de US $361.64 que este negou-se a pagar, alegando que os funcionários haviam  violado seus direitos aborígenes e contratuais dispostos na Constituição do Canadá, que incluem  direito a comercializar livremente através da  fronteira internacional.

 

          8.       Muitas das mercadorias que o Grande Cacique Mitchell levou ao Canadá  foram oferecidas como presentes à comunidade mohawk de Tyendinaga numa cerimônia que comemorava a retomada dos vínculos comerciais entre as nações Akwesasne e Tyendinaga. Esta prática continua um costume tradicional entre os dois povos, que estabeleceram uma  relação comercial durante gerações. O resto das mercadorías estavam destinadas ao comércio. O Grande Cacique Mitchell invocou na  Sala de Primeira Instância da  Corte Federal do Canadá o direito a ingressar mercadorias, livres de impostos, dos  Estados Unidos, através da  fronteira que divide o território de sua comunidade. O direito invocado englobava o ingresso de mercadorias para 1) uso pessoal; 2) uso pelos membros de sua comunidade, e 3) o comércio, não a nível geral, mas com outros povos aborígenes do Canadá.

 

          9.       Os peticionários argumentam que o comércio é parte integral da cultura Mohawk e que está protegido pelo  artigo XIII da  Declaração Americana. Os peticionários argumentam que, como parte do direito a participar na  vida cultural da  comunidade, o povo Mohawk tem  direito a comercializar dentro de sua própria nação e com outras nações membros da  Confederação Iroquois, sem a imposição de impostos e gravame de alfândega. A imposição de impostos e gravames pelo Canadá às mercadorias que cruzam a fronteira interfere com uma atividade que é central para a identidade cultural e a integridade dos  mohawk.

 

          10.     Os peticionários baseiam sua denúncia de violação do artigo XIII em documentação histórica da  prática geral das nações aborígenes de América do Norte. As provas indicam que os membros da mesma nação ou a mesma confederação não pagavam tributos quando comercializavam entre eles. Invocam dois tratados internacionais –o Tratado de Utrecht e o  Tratado de Jay- como prova da  natureza e o alcance do direito aborígene  invocado pelos  peticionários. O Tratado de Utrecht é um tratado de paz firmado no final da  guerra de secessão contra a Espanha, enquanto o Tratado de Jay foi firmado em 1794 entre Grã Bretanha e os  Estados Unidos.

 

          11.     Os peticionários argumentam que o artigo XV do Tratado de Utrecht e o  artigo III do Tratado de Jay são pertinentes para a solução do presente caso. O artigo XV do Tratado de Utrecht garante às cinco nações indígenas e às outras nações autóctones que eram seus aliados “a plena liberdade de ir e vir por razões de comércio” sem “problemas ou obstáculos”. O artigo III do Tratado de Jay garante os direitos dos  “índios de ambos lados desta linha fronteiriça a passar uma ou mais vezes pelo território, por via terrestre ou por navegação, em direção aos respectivos territórios das duas partes do Continente Americano..e a realizar livremente o comércio e intercâmbio entre eles...Nenhuma das partes gravará com direito de ingresso as peles que trazem por via terrestre ou fluvial a estes territórios, respectivamente, e os índios que passem ou voltem a passar com suas  próprias mercadorias e dinheiro, qualquer que seja a sua natureza, não pagarão pelos  mesmos absolutamente nenhum imposto ou direito.” Embora o tribunal de primeira instância do Canadá tenha concluido que o Tratado de Jay não criava direitos a favor do povo mohawk de Akwesasne, porque não era parte do tratado, os peticionários defendem que o Canadá está obrigado a respeitar essas disposições de acordo com as normas de direito internacional.

 

          12.     Os peticionários afirmam que os tribunais canadenses reconheceram que o comércio é parte integral da cultura da  Nação Mohawk e das Nações Iroquois, em geral. A Corte Federal de Apelações e a Sala de Primeira Instancia da  Corte Federal do Canadá decidiram a favor dos  peticionários e afirmaram a existência do direito aborígene  invocado, mas a Corte Suprema do Canadá revogou sua decisão.

 

          13.     A Sala de Primeira Instância da  Corte Federal, em sentença de 27 de junho de 1997, decretou a favor do Grande Cacique Mitchell, que procurava uma declaração de que ele, como mohawk de Akwesasne, residente no Canadá, tinha direito aborígene  que está protegido pela  Constituição e que lhe permite passar e voltar a passar livremente pela  que agora é a fronteira entre Canadá e os Estados Unidos, incluindo o direito a ingressar mercadorias no Canadá para uso pessoal e comunitário, inclusive para o comércio com outros povos autóctones, sem ter que pagar gravames ou impostos de nenhuma espécie a nenhum  Governo ou autoridade canadense. A Corte concluiu que trata-se de “ o comércio e o  traslado livre através da  fronteira em direção à sociedade Mohawk, e que as atividades dos  Mohawk centralizavam-se nas  viagens, a diplomacia e o comércio”. Esta atividade é integral e não incidental da sociedade Mohawk.  Aplicada a prova para determinar se existe ou não um direito aborígene  estabelecido em R. contra Van der Peet, [1996] 4 C.N.L.R. 177 (S.C.C.), a Corte Suprema do Canadá determinou que uma prática, tradição ou costume moderna deve ter  sido parte integral da  cultura distintiva do povo aborígene  antes de seu contato com os europeus. Aplicando esta prova, o tribunal de primeira instância concluiu que o Grande Cacique Mitchell e os Mohawks de Akwesasne podiam invocar o direito a passar e voltar a passar livremente através da  fronteira entre Canadá e Estados Unidos com mercadorias para uso pessoal, uso comunitário e um pequeno intercâmbio, não comercial, com outros povos autóctones.  Este direito, segundo o significado da  seção 35 da  Constituição de 1982, que outorga caráter constitucional aos direitos aborígenes e contratuais existentes, baseia-se no costume e tradição Mohawk anteriores à chegada dos europeus em 1609.

 

          14.     A Corte Federal de Apelações [1999] afirmou substancialmente a decisão do juiz de primeira instância em favor do Grande Cacique Mitchell, mas não concordou quanto ao alcance do direito aborígene  em questão. A Corte de Apelações decidiu que o direito do Sr. Mitchell a ingressar mercadorias dos Estados Unidos para um intercâmbio tradicional, não comercial, não compreende todos os membros dos  povos autóctones.

 

          15.     A Corte Suprema do Canadá, mediante sentença datada de 24 de maio de 2001, revogou o reconhecimento do direito aborígene  do Grande Cacique Mitchell ao comércio com outras nações autóctones, afirmando que “não foi estabelecido o direito aborígene  invocado, pois o  demandado deve pagar impostos pelas mercadorias importadas para o Canadá”. A Suprema Corte concordou com as decisões dos  tribunais inferiores  quanto ao carácter essencial do comércio para os povos Mohawk e Iroquois, mas aplicou a prova de  Van der Peet, para concluir que não existiam provas suficientes da existência de um direito aborígene  de transportar mercadorias através da  fronteira internacional com fins de comércio com outros povos autóctones. O aspecto em questão era o alcance geográfico do comércio, e não a existência deste em si. A Corte Suprema  entendeu que, embora as provas indicassem  que os Mohawk ocasionalmente viajavam ao norte do río San Lorenzo e que o comércio era uma característica distintiva de sua sociedade, não estabeleciam uma prática ancestral de comercializar com o norte que fosse integral à cultura Mohawk ou vital para a identidade Mohawk.  O comércio anterior ao contacto com europeus era realizado no eixo este-oeste.

 

          16.     Como guia para aplicar o artigo XIII ao caso presente, os peticionários referem-se ao artigo 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ao qual o Canadá aderiu em 1976. Os peticionários argumentam a favor do critério flexível e amplo de interpretação da  cultura adotado pelo  Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Em seu Comentário Geral 23, aprovado em 1994, o Comitê de Direitos Humanos afirma que “a cultura se manifesta de muitas formas, inclusive de modo particular de vida relacionado com o  uso de recursos terrestres, especialmente no  caso dos  povos indígenas. Posteriormente assinala que “esse direito pode incluir atividades tradicionais tais como a pesca ou a caça e o direito a viver em reservas protegidas pela lei”. 

 

          17.     Além disso, o Comitê de Direitos Humanos da  ONU afirmou, no  caso do  Cacique Ominayake  e o grupo  Banda de Lubicon Lake contra Canadá que “os direitos protegidos pelo  artigo 27 incluem os direitos das pessoas, em comunidade com outras, a participar de atividades econômicas e sociais que são parte da  cultura da  comunidade a  que pertencem.”  Como o comércio é uma atividade econômica essencial para a cultura Mohawk, deve-se  interpretar como um direito cultural protegido.

 

          18.     Segundo os peticionários, para efeitos de decidir sobre a aplicabilidade do artigo XIII da  Declaração Americana aos fatos em questão, deve-se aplicar a prova que o Comitê de Direitos Humanos da  ONU aplica na determinação de uma violação do artigo 27 do PIDCP. Ao determinar se o Estado descumpriu sua obrigação de proteger os direitos culturais, o Comitê de Direitos Humanos considera a medida em que o Estado estabeleceu  consultas com a minoria indígena afetada.  Os peticionários alegam que, segundo essa prova, o Canadá violou o artigo XIII por não incluir a participação do povo Mohawk quando regula sua atividade econômica. Os peticionários argumentam, portanto, a favor do início de um processo de solução amistosa com o Canadá a fim de alcançar um acordo de cooperação.

 

          19.     Além de citar a visão do Comitê de Direitos Humanos da  ONU, os peticionários referem-se às normas internacionais emergentes sobre os direitos indígenas com respeito ao direito à cultura. Vários instrumentos internacionais vigentes e emergentes afirmam o contacto através das fronteiras entre povos indígenas.  Por exemplo, a Convenção No. 169 sobre os povos indígenas e tribais, da  Organização Internacional do Trabalho (OIT), dispõe que: “Os Governos deverão tomar medidas apropriadas, inclusive por meio de acordos internacionais, para facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, incluindo as atividades nas esferas econômica, social, cultural, espiritual e de meio ambiente.” Os peticionários também citam o artigo 35 do projeto de Declaração da  ONU sobre os direitos dos  povos indígenas, que reconhece que “os povos indígenas, em particular, os que estão divididos por fronteiras internacionais, têm o direito de manter e desenvolver os contactos, as relações e a cooperação, incluindo atividades de carácter espiritual, cultural, político, econômico e social, con outros povos através das fronteiras.”  Esta Declaração também dispõe que “Os Estados adotarão medidas eficazes para garantir o exercício e a aplicação deste direito.”  Ademais, o artigo XIV(2) do projeto de Declaração da OEA sobre os Direitos dos  Povos Indígenas reconhece que  “os povos indígenas têm o  direito a manter contato pleno e atividades comuns com seus membros que habitam o território de Estados vizinhos.”   Disposições similares estão contidas na Declaração da  ONU sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Lingüísticas e a Convenção Européia sobre a Proteção das Minorias Nacionais. Os peticionários argumentam que o artigo XIII da  Declaração Americana deve ser interpretado de acordo com estas normas internacionais emergentes sobre os povos indígenas.

 

B.       O Estado

 

20.     O Estado solicita que a Comissão declare inadmissível a petição porque “os fatos não substanciam violação alguma do artigo XIII” e o artigo 34(a) do Regulamento da  Comissão dispõe que esta declarará inadmissíveis as petições que não estabeleçam fatos que tendem a estabelecer uma violação dos  direitos consagrados nos  instrumentos de direitos humanos aplicáveis.

 

21.     O Estado argumenta em primeiro  lugar que o direito à cultura protegido pelo  artigo XIII da  Declaração Americana não compreende o direito a comercializar através de fronteiras internacionais em geral, nem o direito ao comércio livre da  imposição de taxas alfandegárias e impostos.  Segundo, o Estado alega que a petição não revela fatos que respaldem uma violação do artigo XIII da  Declaração porque os documentos apresentados não demonstram que as práticas históricas do povo mohawk excluiram o pagamento de pedágio e tributos quando cruzavam as fronteiras territoriais.  O Estado defende que o pagamento de pedágios e tributos nas fronteiras territoriais era um “aspecto das práticas históricas ou culturais do povo Mohawk inclusive antes da  chegada dos  europeus à América do Norte.”

 

22.     O Estado assinala que o artigo XIII da  Declaração não protege o comércio, com ou sem imposição de impostos, como aspecto da  cultura.  O Estado interpreta o nível de proteção à respeito do direito à cultura na  Declaração Americana recorrendo a disposições de outros tratados internacionais que obrigam o Canadá, incluindo o artigo 27 do PIDCP, o artigo 27(1) da  Declaração Universal dos  Direitos e Deveres do Homem e o artigo 15(1)(a) do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.  O texto do artigo XIII difere das disposições de outros documentos internacionais que protegem os  direitos culturais, em particular, do artigo 27 do PIDCP.  Enquanto o artigo 27 do PIDCP refere-se especificamente ao direito das minorias étnicas, religiosas e lingüísticas “em comum com os demais membros de seu grupo, a ter sua própria vida cultural, a professar e praticar sua própria religão e a empregar seu próprio  idioma”, o artigo XIII da  Declaração refere-se mais amplamente ao direito de “toda pessoa...de participar na  vida cultural da  comunidade...”.  De modo que o direito à cultura segundo o artigo XIII da  Declaração não se limita aos integrantes individuais de grupos minoritários, mas engloba toda pessoa de um Estado membro da  OEA.  Com base nesta interpretação, o Estado afirma que todos os residentes de um Estado membro  gozam do direito ao comércio internacional como aspecto cultural, quando o comércio é considerado um aspecto importante da  vida comunitária.  O direito a comercializar através de fronteiras territoriais sem pagar direitos ou impostos seria aplicável de forma análoga a todos os residentes do Estado membro.

 

23.     O Estado argumenta que o comércio não é, per se, um aspecto da cultura, a menos que o comércio envolva mercadorias ou produtos de conhecimento tradicional culturalmente significativos.  As mercadorias para o comércio ingressadas no Canadá pelo  Grande Cacique Mitchell incluiam bens de consumo (a saber, uma máquina da var, rolos de pano, bíblias, roupa usada, mantimentos) com destino a revenda e como presentes para selar um acordo comercial com os Mohawk de Tyendinaga.  Os artigos não foram levados ao Canadá para uso pessoal do Grande Cacique Mitchell ou sua família.  O Estado alega que o direito a comercializr internacionalmente estas mercadorias de consumo engloba toda pessoa, como parte de seu direito a participar na  vida cultural da  comunidade, segundo o artigo XIII.

 

24.     O Estado refere-se também, em respaldo de sua interpretação do artigo XIII, às opiniões do Comitê de Direitos Humanos da  ONU com relação ao artigo 27 do PIDCP.  O Comitê declarou que as atividades econômicas devem englobar um elemento essencial da  cultura da  minoria étnica para estar amparadas pelo direito  à cultura. O Estado conclui, a partir das observações do Comitê da  ONU, que um comércio divorciado dos  elementos essenciais da  cultura (por exemplo, o idioma, a espiritualidade,  a arte, a música) não está protegido pelo  artigo XIII.

 

25.     Segundo o Estado, a interpretação dos  peticionários do artigo XIII no  sentido de que inclui um direito ao comércio através das fronteiras internacionais sem pagamento de impostos ou gravames é incompatível com o artigo XXXVI da  Declaração Americana, que impõe o dever de toda pessoa “de pagar os impostos estabelecidos por lei para a manutenção dos  serviços públicos”. O direito dos  Estados a impor impostos não deve estar limitado pelo  direito a participar na  vida cultural da  comunidade. O Estado observa que a capacidade de arrecadar impostos destinados a proteger a indústria nacional contra a concorrência estrangeira, a prover verbas para os serviços públicos e regulamentar a atividade comercial é um atributo da  integridade territorial e a soberania dos  Estados. Como prova disto, o Estado refere-se às observações do Comitê de Direitos Humanos da  ONU, em seu Comentário Geral 23 sobre os direitos das minorias, no  sentido de que “o exercício dos  direitos a que faz referência o artigo 27 não afeta a soberania e integridade dos  Estados partes”.

 

26.     O segundo argumento do Estado é que a petição é inadmissível porque não baseia-se em fatos que configuram uma  violação ao artigo XIII.  Embora o  Estado reconheça que o comércio desempenhou um papel substancial na  cultura tradicional do povo Mohawk, impugna a afirmação dos  peticionários de que o livre comércio é um aspecto da cultura Mohawk. As práticas históricas do povo mohawk antes da chegada dos europeus a América do Norte incluiam o pagamento de pedágios e tributos por cruzar as fronteiras territoriais.  O Estado observa que a evidência de historiadores apresentada no  julgamento de Mitchell e aceita como fato pelos  tribunais canadenses respalda esta conclusão.

 

27.     O Estado argumenta que o requisito de pagar gravames pelas mercadorias ingressadas no Canadá não impede substancialmente que os Mohawk de Akwesasne participem do  comércio com outros povos indígenas. Ademais, não existe prova alguma de que a imposição de gravames tenha impedido essencialmente o restabelecimento de vínculos comerciais ou tenha impedido que os Mohawk intercambiassem mercadorias no  contexto do comércio ou da cultura.  O Estado defende  que o não pagamento de tributos daria ao povo Mohawk uma vantagem  econômica frente às demais pessoas ou empresas que se dedicam a um comércio similar. Esta vantagem econômica –assinala o Estado- não forma parte do direito do povo a participar da  vida cultural da  comunidade.

 

28.     Quanto à decisão da  Corte Suprema do Canadá em Mitchell, o Estado observa que as conclusões do juiz de primeira instância foram revogadas em relação ao alcance geográfico do comércio tradicional mohawk.  A Corte Suprema entendeu que não havia provas que respaldassem a pretensão de que os Mohawk comercializassem  tanto ao  norte, dentro do que agora é o Canadá.

 

29.     O Estado solicita que, se a Comissão concluir que a petição é admissível, considere a relevância da  referência dos  peticionários ao Tratado de Utrecht de 1713 e/ou ao Tratado de Jay de 1794 para a determinação dos  méritos da  petição.  Em particular, o Estado solicita também que a Comissão indique em sua decisão sobre a admissibilidade, se considera que seria necessário emanicar a situação dos  artigos desses tratados e, mais especificamente, sobre a vigência e efeito do artigo III do Tratado de Jay de 1794.  O Estado argumenta que os tratados não são relevantes para os méritos da  petição porque não são tratados multilaterais que tratam de direitos humanos.  Observa que os tratados não são diretamente  aplicáveis no direito interno e, portanto, são irrelevantes para a questão do esgotamento dos  recursos internos.  Por último, o Estado observa que a Comissão não tem  jurisdição para decidir sobre a vigência e o conteúdo desses tratados.

 

 

          IV.      ANÁLISE

 

A.      Competência da  Comissão Interamericana ratione pessoae, ratione materiae, ratione temporis e ratione loci

 

30.     Os peticionários afirmam que o Estado violou os direitos do Grande Cacique Mitchell e dos  Mohawk de Akwesasne, amparados no  artigo XIII da  Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem.  O Estado é Estado membro da  Organização dos  Estados Americanos, mas não é parte da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos.  Por conseguinte, o Estado está submetido à jurisdição da  Comissão no que se refere à Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem, segundo o disposto no  artigo 49 do Regulamento da  Comissão.  O Canadá depositou o instrumento de ratificação da  Carta da  OEA em 8 de janeiro de 1990.[1] Os fatos relatados  na  petição ocorreram depois da ratificação da  Carta da  OEA pelo  Estado. As supostas vítimas são pessoas naturais e a petição foi apresentada de acordo com o artigo 23 do Regulamento da  Comissão.  Por conseguinte, a Comissão tem  competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

31.     A Comissão tem competência ratione loci  para considerar a petição porque na  mesma se denunciam supostas violações de direitos protegidos pela  Declaração Americana que ocorreram dentro do território de um Estado parte destes instrumento.  A Comissão tem  competência ratione temporis porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos pela  Declaração Americana já estava vigente no  Estado na data em que ocorreram os fatos alegados na  petição.  Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na  petição se denunciam fatos que, se provados verdadeiros, configurariam violações dos  direitos humanos protegidos pelo  artigo XIII da  Declaração Americana. 

 

B.       Outros requisitos para a admissibilidade da  petição

 

a.       Esgotamento dos  recursos internos

 

32.     O artigo 31(1) do Regulamento da  Comissão especifica que, para que um caso seja admitido, “a Comissão verificará se foram interpostos e esgotados os recursos da  jurisdição interna, conforme os princípios do direito internacional geralmente reconhecidos.”  No  sistema legal interno do Canadá, o presente caso chegou à instância superior do país, a Corte Suprema do Canadá.  Portanto, não existe outro recurso interno que os peticionários possam esgotar.

 

b.                 Prazo para a apresentação

 

33.     A petição foi apresentada dentro do prazo de seis meses a partir da data em que os peticionários foram notificados da  sentença da  Corte Suprema do Canadá no  processo interno de Mitchell contra o Ministro de Verbas Nacionais [2001] 1 SCR 911.  A sentença da  Corte Suprema do Canadá é datada de 24 de maio de 2001 e a petição foi apresentada à Comissão por correio eletrônico em 23 de novembro de 2001.

 

c.       Duplicação de procedimentos e res judicata

 

34.     Os peticionários confirmam que a matéria da  petição não está pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem reproduz uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional. 

 

d.       Caracterização dos  atos alegados

 

35.     A Comissão considera que, se provados verdadeiros os  fatos alegados, estes poderiam constituir violações dos direitos garantidos pelo  artigo XIII da  Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem.  A Comissão considera que não é necessário a esta altura do processo determinar se violou ou não uma disposição da  Declaração Americana. Para os efeitos da  inadmissibilidade, a Comissão deve decidir que a petição não afirma fatos que tendam a estabelecer uma violação dos  direitos garantidos pela  Declaração Americana, como disposto no artigo 34(a) de seu Regulamento.

 

36.     O Regulamento, não obstante, não afirma que, para fins de admissibilidade, a petição deva afirmar fatos que estabeleçam uma violação dos  direitos garantidos pela  Declaração Americana, especialmente quando o conteúdo desse direito nunca foi  determinado pela  Comissão ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos.  A Comissão deve avaliar  prima facie para determinar se a denúncia estabelece uma violação aparente ou potencial de um direito garantido pela  Declaração Americana, mas não está obrigada, na  etapa da  admissibilidade, a determinar se de fato existiu uma violação. Esta avaliação consiste num  exame sumário em que não se prejulga nem se oferece opiniões prematuras sobre o mérito.  Ao estabelecer duas etapas distintas, de admissibilidade e de mérito, o Regulamento da  Comissão reflete esta separação entre a avaliação realizada pela Comissão para fins de declarar se uma petição é admissível, e aquela realizada para determinar se houve violação.[2]

37.     Os peticionários defendem o direito aborígene do povo indígena, protegido pelo  artigo XIII da  Declaração Americana que consiste em levar mercadorias através da  fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos, com a finalidade de comerciá-las com outras nações autóctones sem o pagamento de impostos alfandegários ao cruzar a fronteira internacional.  O Canadá argumenta que o artigo XIII certamente não protege um comércio livre de gravames ou impostos.  A Comissão considera que o exame das alegações dos  peticionários requer um conhecimento mais profundo das questões envolvidas, especialmente a respeito do que compreende como direito à cultura, segundo a Declaração Americana, e sobre se o direito à cultura compreende os fatos alegados na  petição.  Nesta análise, a Comissão não está obrigada pela  definição do “direito à cultura” da  justiça canadense ou a prova de Van der Peet, ainda que a análise e a interpretação destas instâncias pode aportar elementos úteis para a interpretação do conteúdo substancial do artigo XIII da  Declaração Americana por parte da  Comissão.  Neste contexto, a Comissão, visto que não constitui uma quarta instância, não decidirá a respeito do Tratado de Utrecht ou o Tratado de Jay para determinar o mérito do caso. Ambos tratados serão considerados pela Comissão, assim como as decisões dos  tribunais inferiores, a fim de entender os  procedimentos a nível nacional.

 

          38.     Com respeito à petição atual, a Comissão considera que exige uma instrução substantiva mais profunda a respeito do conteúdo do “direito à cultura” conforme o disposto no artigo XIII da  Declaração Americana, antes de extrair alguma conclusão.  Dado que este é um caso novo, a Comissão solicita que as partes, ao apresentar suas alegações finais sobre o mérito, ofereçam suas opiniões sobre o que significa o “direito à cultura” na  Declaração Americana, em relação ao presente caso, e por que os fatos relatados nele estão ou não compreendidos na  caracterização desse direito.  A Comissão não entende que a petição seja “manifestamente infundada” e considera que os peticionários tem direito a uma audiência plena e imparcial a respeito de possível violações dos  direitos dispostos na Declaração Americana ao Grande Cacique Mitchell.

 

 

V.      CONCLUSÕES

 

39.     A Comissão Interamericana conclui que tem competência para examinar o presente caso e declara que a petição é admissível, conforme o artigo 37 do Regulamento. Com base dos  argumentos de facto e de jure estabelecidos neste documento, e sem prejulgar o mérito da  petição,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar o presente caso admissível no que se refere às possíveis violações de direitos protegidos pelo  artigo XIII da  Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem;

 

2.         Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito do assunto.

 

4.         Publicar o presente relatório e inclui-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 22 de outubro de 2003. (Assinado)   José Zalaquett, Presidente; Clare K. Roberts, Primeiro Vice-Presidente; Susana Villarán, Segunda Vice-Presidenta, Comissionados Robert K. Goldman e Julio Prado Vallejo.


 


[1]  A Corte Interamericana e a Comissão determinaram previamente que a Declaração Americana dos  Direitos e Deveres do Homem é fonte de obrigação internacional para os Estados membros da  OEA que não são partes da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em virtude dos  artigos 3, 16, 112 e 150 da  Carta da  OEA.  Ver Carta da  Organização dos  Estados Americanos, Art. 3, 16, 51, 112, 150; Estatuto da  Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Art. 1, 20; Regulamento da  Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Art. 23, 27, 28-43, 45-47, 49-50; Corte IDH, Opinão Consultiva OC-10/89 “Interpretação da  Declaração dos  Direitos e Deveres do Homem dentro do marco do artigo 64 da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, 14 de julho de 1989, Ser. A No. 19 (1989), pars. 35-45; CIDH, James Terry Roach e Jay Pinkerton contra . Estados Unidos, Caso 9647, Res. 3/87, 22 de setembro de 1987, RELATÓRIO ANUAL CIDH 1986-1987, pars. 46-49.

[2] Ver  Relatório Nº 31/03, Admissibilidade, Petição 12.195 Mario Alberto Jara Oñate e outros, (Chile), 7 de março de 2003.